domingo, 3 de junho de 2012

Reflexões sobre a Brasileirão na era dos pontos corridos.
Por André Sarli
Todas as fotos pertencem a seus respectivos proprietários e são utilizadas em caráter meramente ilustratório.

Em 2003, o Campeonato Brasileiro começava a ser disputado sob os auspícios de uma nova fórmula. Os pontos corridos eram considerados tanto a fórmula mágica da organização como o desastre da competitividade do futebol brasileiro. 

Agora, começando a 10ª edição, já se podem tirar conclusões muito além do mero achismo. Observar os efeitos da fórmula exige muito mais do que um campeonato ou dois ou três anos. Até porque com o passar dos anos o número de participantes diminuiu. Assim o modelo ficou se consolidando por mais uns 4 anos até atingir a estrutura como está hoje: todas as equipes jogam umas contra as outras em turno e returno e ao final a equipe que mais pontuou sagra-se campeã. 

Competitividade

Dentre as primeiras observações, a primeira que se faz é rebater a assertiva que esse modelo faz com que o Campeonato Brasileiro não seja equilibrado. Isso se baseia peremptoriamente no fato de que os campeonatos pelo mundo afora, de um nível técnico mínimo, privilegiaram o aparecimento de rivalidades entre no máximo quatro equipes ou até duas equipes. E que o futebol brasileiro tem 12 times grandes que competiam de igual para igual entre si. E que dessa forma, o poder econômico privilegiaria, criando artificialmente mais um patamar de times que dominariam o Brasileirão. 

Certamente, isto não aconteceu e não está em vias de acontecer.

Em 9 edições, 6 equipes foram campeãs. Cruzeiro, Santos, Corinthians, São Paulo, Flamengo e Fluminense.
Certamente nenhum equipe chegou perto do domínio. 
Para se ter uma noção, o Campeonato Italiano teve em 20 edições 5 campeões, e em 10 edições, 3 campeões. Sendo que uma equipe, a Internazionale, ficou com metade das taças.
No Campeonato Espanhol, tivemos 3 campeões em 10 anos. Sendo que Barcelona e Real Madrid conquistaram juntos 9 títulos no período.
No Campeonato Inglês, tivemos 4 campeões em uma década. Sendo que Manchester United e Chelsea tem 8 dos 10 títulos juntos.
Mesmo no Campeonato Alemão, notadamente mais competitivo, 5 times foram campeões em 10 anos,  mas com a ressalva que metade destes títulos ficaram com o Bayern de Munique.
A comparação com o campeonato Argentino é de certa forma complicada, posto que lá existem dois campeões por ano, respectivamente do Apertura e do Clausura. Então em 20 títulos disputados tivemos como campeões Racing, River Plate, Independiente, Boca Juniors, Newell's Old Boys, Velez Sarsfield, San Lorenzo, Lanús, Banfield e Argentinos Juniors - ou seja, 10 campeões, sendo que dos últimos 10 campeonatos foram 8 campeões diferentes.

Barcelona e Real Madrid - Exemplo de polarização do certame nacional espanhol.

Então falamos dos melhores campeonatos de futebol em nível nacional do mundo, notadamente os mais tradicionais. Existem algumas razões que explicam esses números:

- Território: Os países europeus tem um área territorial muito menor do que Argentina e mais ainda do que o do Brasil. Certos estados brasileiros são maiores que a Espanha.
- População: Conforme o tamanho do território influi, a distribuição populacional varia de acordo as distancias. Como nas cidades europeias a taxa de ocupação demográfica é muito maior, a população está mais condensada, e isso mitiga a influencia de clubes menores que potencialmente viriam a almejar um título.
A população sul-americana está muito mais espalhada em outras cidades, que distantes entre si, favorecem a criação de polos de torcida que dizem respeito a um certo time. É muito mais fácil um torcedor espanhol assistir um jogo do Real Madrid no estádio, porque a distancia é menor, do que um mineiro buscar assistir o jogo do Flamengo no Engenhão.
A grande rotatividade Argentina pode ter razões econômicas também. Com a crise fiscal e decréscimo do PIB no país, a diferença entre as grandes equipes e equipes menores caiu também. É muito mais difícil ao Boca Juniors e River Plate conseguirem bons contratos de patrocínio e também de venda de jogadores, quando comparados com os anos antes de 2000.


Emoção?

Outro detalhe a acentuar é o quesito de emoção dos jogos. Teria o Brasileirão perdido um pouco do Appeal com a extinção do mata-mata? Esse é um campo um pouco mais difícil para inquirições, afinal teria-se que entrar na mente de cada torcedor e o fato de seu time ter sido campeão na era dos pontos corridos certamente vai interferir. Além do que, 10 anos de um novo modelo é o suficiente para o surgimento de uma geração inteira de torcedores que só viram os pontos corridos.
Digamos que a emoção do campeonato perdeu um pouco de impacto, mas ganhou em sujeitos e momentos do futebol. 

Antes o momento mais lembrado era a final do Campeonato, especialmente por conta do time que foi campeão. No máximo o vice-campeão conseguia algum reconhecimento, isto dependendo do time em questão ter feito uma campanha histórica (ex: Vitória em 1993, Portuguesa em 1996). 
No entanto, em uma série de edições ainda assim a final terminou empatada ou mesmo culminou em um nada emocionante 0 x 0. 
Mas no geral, o título tem um maior impacto em uma final por causa de toda a expectativa criada em um único jogo que pode definir o campeonato.

Nos pontos corridos, a atenção está dividida entre vários jogos e vários times. Para começar, toda a trajetória do campeão é de se lembrar, ao invés de apenas o último jogo. Por exemplo, na última edição o torcedor corinthiano certamente lembra a vitória contra o grêmio no olímpico (2 x 1), a goleada em cima do até então líder São Paulo (5 x 0), a difícil vitória contra o Inter (1 x 0), os empates contra Inter e Vasco fora (1 x1 e 2 x 2), e a última série de 5 jogos que lhe deu o título. 

A atenção é dividida também em vários "jogos do título" e sobre isso há uma pequena perda de força. Por exemplo no Campeonato de 2009 Grêmio, Flamengo e São Paulo poderiam ser campeões. O telespectador certamente só poderia ver um jogo na integra. Além disso há a oportunidade de um time ser campeão em mais de uma rodada, dependendo de uma série de resultados. O torcedor cria a expectativa de ver um time ser campeão dependente do desempenho de outros times, com algumas rodadas de antecedência. 

Fluminense em 2009 - Um campeonato a parte, tão emocionante quanto o título, para fugir do rebaixamento.


Se nesse aspecto a atenção dividida não pode ser considerada tão emocionante como uma final, em outro os pontos corridos ganham: os mini-campeonatos. Conforme o certame avança, alguns times começam a disputar entre si uma vaga na Libertadores, na Sul-Americana, ou a presença na Série A. Com isso alguns jogos adquirem emoção e o torcedor certamente se lembra de algumas partidas que proporcionaram esse sentimento. O Fluminense que driblou inclusive a matemática para fugir do rebaixamento em 2009 é um grande exemplo. O Figueirense que em alguns campeonatos fez campanhas dignas de no mínimo participar da Libertadores. O Goiás que merecidamente chegou à final da Sul-Americana depois de uma série de boas campanhas no Brasileirão.

Então posso chegar a conclusão de que em emoção, o campeonato não perdeu muito em intensidade, e ganhou muito em variedade.

Previsibilidade

Com relação a previsibilidade, os pontos corridos foram um avanço, interna e externamente. Externamente por que com a imposição dos pontos corridos, aquele costume de mudança de regulamento que acontecia praticamente todos anos foi para o beleléu. Para quem não acompanhou o processo, basta ver o que acontece com o Campeonato Paulista que mudou o sistema do ano passado para este ano. 
No Brasileirão, desde a disputa por módulos, por turno único, play-offs, jogos decididos por penalidades ao final, a serie de mudança fizeram com que cada campeonato fosse diferente do outro e com isso se privilegiasse uma espécie campanha sobre a outra. Os times investiam mais em explosão do que em estabilidade. Bastava chegar entre os oito melhores, ou mesmo participar da segunda divisão. O aspecto sorte tinha maior peso do que hoje. O último mata-mata é um bom exemplo: graças a uma partida infeliz do Coritiba, o Santos lhe roubou o oitavo lugar e a classificação para as oitavas de final, e chegou ao título (não discuto aqui se foi justo, mas que foi emocionante, foi).

Todos se lembram de Robinho em 2002, mas se não fosse um tropeço do Coritiba na ultima rodada conta o já rebaixado Gama, o time não teria se classificado para as oitavas de final. 


Internamente, agora os times sabem que devem investir em um determinado número de jogos, todos com igual importância; que o banco de reservas é essencial para se alcançar as melhores posições do certame; que a demissão de um técnico deve ser muito bem estudada, e que a atuação dos times na janela de transferência pode ser a alegria ou o desastre de uma campanha. 
Maior destaque é o aspecto econômico e financeiro da previsibilidade. Claramente os times ganharam com melhores contratos de TV aberta, de pay-per-view e de patrocinadores. Conforme todos os jogos estão definidos em horário e lugar, salvo pequenas exceções, até o fim do campeonato, fica bem mais fácil vender em pacote para a TV e garantir a exposição pacífica de patrocínios. 
Não é a toa que os times estão se reforçando muito melhor do que em 2002 e 2003 e ainda 1995, 1996. Hoje o Campeonato Brasileiro já disputa em salários com o Português e consegue criar oportunidades para bons jogadores voltarem do centrão da Europa.
Isso está começando a criar um círculo virtuoso de qualidade que valoriza ainda mais o Brasileiro. Claro  que o futuro disso depende muito da manutenção de uma boa economia no Brasil. 

Justiça

Talvez seja a qualidade mais peculiar do Campeonato o ganho em justiça. Conforme já exposto, antes um time poderia chegar a ser campeão mesmo disputando uma parte do Campeonato na segunda divisão, ou chegando em oitavo lugar. Um time que ganhou 3/4 do que ganhou o primeiro colocado poderia ser campeão em cima do mesmo com muito menos pontos. Isso provocava questões de justiça, posto que ficar em primeiro muitas vezes era uma vantagem inócua.
Os pontos corridos proporcionam que o time que realmente foi melhor no apanhado geral seja campeão. Isso valoriza outros pontos do futebol, como o planejamento e o banco de reservas. Vide como o São Paulo foi campeão em 2006 e 2008, com campanhas sólidas que não se basearam na simples sorte de um gol no ultimo fim ou penalties mal marcados, mas uma série de jogos que lhe deram vantagem de pontos.

Campeonato Brasileiro de 1985. Coritiba  foi campeão com 17 pontos  a menos que o vice Bangu, que por sua vez participou de um grupo com times de nível de série C para chegar a outras fases. Campeonato Brasileiro mudava de fórmula a cada ano. 


Outros efeitos reflexos

Isso tudo cria uma atmosfera de estruturação no futebol. Nunca antes os times começaram tanto a assumir projetos de sócio-torcedor, renovação política, construção de Centros de Treinamento ou novos estádios, políticas de formação de base, projetos econômicos para manutenção ou compra de jogadores, entre outros, que são atividades que tem em comum o pensamento em longo prazo. 
A permanência de Neymar, a contratação de Ronaldo, os sucessos do Internacional com o Sócio Torcedor, o recente tricampeonato do São Paulo são ilustrativos dessa nova fase do futebol brasileiro. Mas isso também quer dizer maior concorrência. Qualquer passo em falso, mal planejamento, e mesmo técnicas antigas de administração do futebol como contratação impensada de medalhões e demissão de técnicos podem pôr em risco uma pequena geração de jogadores de um time. Grêmio, Corinthians, Vasco, Botafogo, Palmeiras são alguns exemplos disso. E seus rebaixamentos em geral tiveram um efeito reflexo de reorganização. Os três primeiros foram campeões logo após retornarem da segunda divisão.

Projeto Neymar 2014 - Reflexo de novos ares no Brasil e  de alguma forma impossível na década de 90.


Conclusões

O Campeonato de pontos corridos trouxe muito mais vantagens do que desvantagens. Em minha visão estas se resumem a poucos critérios de emoção. Todos os outros campeonatos são mata-mata, então mesmo esse aspecto pode ser relativizado - não faltam finais pelo Brasil e mundo afora. 
O crescimento em qualidade e o investimento nos times são as melhores heranças e razões para manutenção do atual sistema. As criticas e eventuais reclamações para mudança do sistema não se explicam intelectualmente ao tentar bater muitas das características do certame em turno e returno. É muito salutar que o sistema seja mantido por no mínimo mais 10 anos, posto que uma mudança próxima poderia por a perder os recentes investimentos feitos pelos clubes brasileiros, que não por acaso, são os times que se destacaram em títulos nos últimos anos. 


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